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Fraude na Amazônia: empresas usam terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono a gigantes multinacionais

Fraude na Amazônia: empresas usam terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono a gigantes multinacionais

 

Defensoria Pública do Pará entrou com ações na Justiça contra empresas. Três projetos estão sobrepostos a áreas de florestas públicas estaduais sem autorização do governo do Pará. Créditos gerados foram usados por grandes multinacionais e até um clube de futebol da Inglaterra para compensar emissões. O g1 esteve na região; comunidades locais disseram não ter sido beneficiadas.

 

Por Taymã Carneiro, Isabel Seta, Giaccomo Voccio, g1 — Portel, no Pará, e São Paulo

02/10/2023 04h00  Atualizado há um dia

 

Cinco empresas brasileiras e três estrangeiras (uma americana, uma canadense e uma britânica) usaram terras públicas na Amazônia para lucrar, de forma irregular, com a venda de créditos de carbono para gigantes multinacionais, segundo a Defensoria Pública do Estado do Pará.

 

▶️ Os casos foram levados à Justiça pela própria Defensoria Pública do Pará, que entrou com três ações civis públicas na Vara Agrária de Castanhal contra os envolvidos em três projetos de crédito de carbono, localizados na área rural de Portel.

 

▶️ Com 62,4 mil habitantes, Portel é um município onde vivem populações ribeirinhas. Fica a 13 horas de barco de Belém, a 263 km da capital, e é cortado pelas águas de diferentes rios do arquipélago do Marajó.

 

▶️ Entre as multinacionais, estão empresas mundialmente conhecidas, como farmacêuticas, companhias aéreas e até um clube de futebol da Inglaterra. Elas compraram esses créditos para compensar as próprias emissões de gases do efeito estufa. As compras foram feitas de modo legal, após os projetos serem registrados pela maior certificadora de venda de créditos de carbono no mundo, a Verra.

 

Vista da floresta amazônica e de trecho do rio Pacajá, na zona rural de Portel (PA), onde estão localizados assentamentos estaduais alvos de projetos de crédito de carbono — Foto: Giaccomo Voccio/g1

▶️ As multinacionais não são alvo das ações da Defensoria Pública. Os processos são contra as empresas que geraram os créditos de carbono. Procuradas pelo g1, as multinacionais alegam, de forma geral, que não tinham conhecimento das irregularidades apontadas pela Defensoria. Já o clube de futebol não respondeu às tentativas de contato (leia o que dizem os citados ao final desta reportagem).

 

 

▶️A Verra diz que colabora com a Defensoria e que suspendeu a venda de novos créditos de carbono dos três projetos enquanto faz “verificações” (leia mais abaixo).

 

A Defensoria do Pará aponta três problemas com os projetos:

 

Os responsáveis dizem que os projetos estão em propriedades particulares, mas, na verdade, eles estão localizados em terras públicas estaduais.

 

Como estão em terras públicas, esses projetos precisavam ter tido alguma autorização dos órgãos do governo local, o que não aconteceu.

 

As comunidades ribeirinhas, que vivem em assentamentos agroextrativistas, demarcados pelo governo do Pará, deveriam ter sido consultadas sobre esses projetos, para dizer se concordavam ou não com eles. Segundo a Defensoria e ribeirinhos, isso também não aconteceu.

 

As ações da Defensoria mostram que atores privados estão ganhando dinheiro com terras públicas de floresta, mas sem a permissão do estado ou qualquer retorno para as famílias da região.

 

Para o órgão, trata-se de grilagem de terras públicas, já que as empresas responsáveis pelos projetos se valeram de matrículas imobiliárias e de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) inválidos para alegar à maior certificadora internacional de crédito de carbono que as áreas eram de propriedade privada.

 

“Trata-se de uma prática ilícita realizada pelos requeridos […] para se beneficiarem de área de floresta pública de posse das comunidades tradicionais”, dizem as ações.

 

O Ministério Público do Pará também passou a acompanhar os casos por um procedimento extrajudicial. Com base nas ações da Defensoria em Portel, o MP do Pará e o Ministério Público Federal emitiram, em julho, uma nota técnica sobre o assunto (leia mais abaixo).

 

📌 Mas o que são créditos de carbono?

 

Trata-se de um mecanismo criado para remunerar projetos que desenvolvem ações de combate às mudanças climáticas. Pode ser com energia renovável, reflorestamento ou preservação da floresta, como é o caso em Portel.

 

Empresas que lançam na atmosfera gases do efeito estufa (o que contribui para as mudanças climáticas) podem recorrer a esses projetos para compensar suas próprias emissões.

 

1 crédito equivale a 1 tonelada de gás carbônico. Uma empresa que emite 100 toneladas de gases do efeito estufa pode, por exemplo, comprar 100 créditos como compensação.

 

Por enquanto, ainda não existe no Brasil um mercado regulado pelo governo. Dessa forma, os créditos são negociados no chamado mercado voluntário.

 

g1 viajou até Portel e percorreu cerca de 400 km pelos rios Anapu e Pacajá para ouvir lideranças e moradores das áreas. Os entrevistados dizem que os representantes das empresas não disseram que os projetos eram de crédito de carbono, não se identificaram com clareza nem trabalharam junto com as associações e organizações locais.

 

Parte das áreas dos projetos está sobreposta a cinco assentamentos dos chamados Projetos Estaduais Agroextrativistas (PEAEX).

 

São terras públicas estaduais já tituladas pelo governo estadual, onde vivem pelo menos 1.484 famílias ribeirinhas em comunidades dispostas ao longo das margens dos rios. No total, os cinco assentamentos somam mais de 3,3 mil km2 (o dobro da área da cidade de São Paulo) de florestas públicas.

 

“Um dos questionamentos que fazíamos era sobre quem financiava o projeto. E eles [representantes das empresas] não quiseram dizer. Também não disseram quem era o coordenador, o dono da empresa. Só diziam ser uma ONG”, conta Gracionice Silva, hoje presidente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Pacajá, que representa um dos assentamentos.

 

“Da forma com que está sendo feito, o dinheiro está indo, e a gente não sabe nem para o bolso de quem”, diz ela.

 

📍 Como funcionavam os projetos no Pará?

 

Para poder vender créditos de carbono no mercado voluntário, projetos do tipo submetem várias documentações a uma certificadora internacional, que possui metodologias para estimar quantas emissões seriam evitadas.

 

A maior certificadora é a Verra, uma organização sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos.

 

Depois que são registrados por uma certificadora, os projetos começam a comercializar créditos.

 

Na zona rural de Portel, três projetos foram registrados e validados pela Verra. Segundo a documentação, eles estavam em terras privadas. Mas não é isso que mostra o cruzamento de coordenadas geográficas.

 

Entre as centenas de compradoras de créditos desses projetos, estão empresas mundialmente conhecidas, como Air France, Boeing, Braskem, Toshiba, Samsung UK, Kingston, Barilla, as farmacêuticas Bayer e Takeda, além do Liverpool, clube de futebol da Inglaterra.

 

Cada contrato de compra e venda de crédito de carbono é negociado de forma privada entre as partes. Assim, não é possível saber exatamente quanto os projetos lucraram com a venda dos créditos.

 

Em 2021, quase 1,4 milhão de créditos do projeto Pacajaí, por exemplo, foram usados por empresas para compensar emissões. Naquele ano, o valor médio global dessa categoria de crédito de carbono foi de US$ 5,80, segundo a Ecosystem Marketplace.

 

Assim, num cenário completamente hipotético em que todos esses créditos do projeto tenham sido vendidos por esse valor em 2021, o total seria de mais de US$ 8,1 milhões, ou R$ 40,8 milhões.

 

O projeto Pacajaí comercializa créditos desde pelo menos 2015 e foi proposto por uma empresa identificada pela sigla ADPML — esta, por sua vez, é controlada por um fundo com sede na ilha britânica Guernsey, no canal da Mancha (procurados, eles não responderam aos pedidos de contato feitos pelo g1).

 

O objetivo de projetos de crédito de carbono desse tipo é financiar a proteção da floresta, evitando o desmatamento. Não há evidências, porém, de que os projetos em Portel tenham, de fato, gerado proteção ambiental.

 

“Foram projetos de gaveta, projetos no papel, que efetivamente não operaram qualquer proteção ambiental nessas áreas de floresta na Amazônia”, afirma a defensora pública agrária Andreia Barreto, autora das ações judiciais.

 

Nesta reportagem você vai ler sobre:

 

‘Grilagem do clima’ (ou como, segundo a Defensoria, foi feito o uso de terras públicas)

 

O que a Defensoria solicita

 

Como funcionam créditos de carbono

 

Os indícios de que os projetos em Portel não geraram proteção ambiental de fato

 

Como os projetos denunciados abordaram as comunidades ribeirinhas

 

A falta de autorização estatal

 

A ausência de consulta e benefícios às comunidades

 

A expectativa dos moradores quanto à regulamentação do mercado de créditos de carbono

 

O que dizem os envolvidos

 

‘Grilagem do clima’

 

Comunidade ribeirinha em assentamento estadual à margem do rio Anapu, em Portel (PA), onde foram vendidos créditos de carbono — Foto: Giaccomo Voccio/g1

 

Comunidade ribeirinha em assentamento estadual à margem do rio Anapu, em Portel (PA), onde foram vendidos créditos de carbono — Foto: Giaccomo Voccio/g1

 

Nos documentos submetidos à Verra, as empresas afirmam que os projetos estão localizados em áreas privadas. A Defensoria Pública do estado do Pará, no entanto, identificou que foram canceladas 45 das 50 matrículas imobiliárias usadas na documentação dos projetos — as outras cinco estão fora das áreas dos assentamentos estaduais.

 

“Essas [45] matrículas integram a prática ilícita da grilagem de terras públicas realizada nos registros dos Cartórios de Breves e Portel, abrangendo áreas multiplicadas apenas em papéis, que não possuem validade jurídica”, dizem as ações.

 

A fraude também contou com a emissão de Cadastros Ambientais Rurais (CAR), usados pelos projetos de forma ilegal, conforme a Defensoria (mais abaixo).

 

Entre as oito empresas processadas na esfera cível pela Defensoria, cinco estão ligadas ao empresário americano Michael Greene, que vive nos Estados Unidos. Ele é sócio e administrador de quatro delas. A quinta está em nome de sua mulher, Evelise da Cruz Pires Greene.

 

Greene é apontado nas três ações como o suposto proprietário de áreas usadas pelos projetos. Ele teria adquirido dezenas de imóveis rurais do brasileiro Jonas Morioka — também alvo da ação da Defensoria por ser apontado como proprietário de algumas terras.

 

A grande maioria dessas matrículas imobiliárias, contudo, foi cancelada pelos cartórios de Portel e de Breves, devido a irregularidades. Muitos dos cancelamentos administrativos ocorreram após uma determinação de 2010 da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. O cancelamento significa que a matrícula deixa de ter validade jurídica.

 

Mesmo assim, os perímetros apontados nas matrículas canceladas foram usados na documentação dos projetos, segundo a Defensoria.

 

Procurado por e-mail e por meio de um funcionário, Greene afirmou que não é ele o responsável pela “regularidade dos imóveis em discussão”.

 

“Sobre as empresas, Brazil Agfor e Agfor Empreendimentos, como supostos proprietários das terras, informo que um particular possuía uma dívida gerada por serviços por mim prestados a ele que, após não serem pagos os valores devidos, gerou uma ação judicial e, de boa-fé, recebi em dação em pagamento imóveis que à época eram propriedades particulares em dação em pagamento, através de um acordo homologado em um processo judicial”, respondeu ele.

 

Greene afirmou ainda que, se necessário, cooperará com a Justiça para “ajustar o que estiver em desacordo legal e cumprir toda e qualquer determinação judicial cabível ao caso”.

 

O americano também é sócio e administrador da Brazil Agfor, com sede em Manaus e em Michigan, nos Estados Unidos, responsável pelo projeto de crédito de carbono Rio Anapu-Pacajá.

 

Perguntado sobre o projeto, Greene disse que foi contratado em 2012 por um “proprietário de terras particulares para prestar um serviço de consultoria e desenvolvimento” do projeto Rio Anapu-Pacajá. Ele não especificou quem foi o contratante.

 

Em 2012, o governo do Pará editou um decreto que reservou áreas na região para os assentamentos estaduais.

 

“Ao tomar conhecimento de que as matrículas dos imóveis particulares passaram a ser questionadas, imediatamente suspendi as atividades relacionadas ao Projeto Rio Anapu-Pacajá, que é o projeto que eu fui contratado para desenvolver em propriedades particulares”, disse Greene, sem especificar quando isso aconteceu. O projeto Rio Anapu-Pacajá gerou créditos em 2021.

 

g1 também mandou e-mails e tentou contato com Jonas Morioka por meio do site dele, mas não obteve retorno. O advogado dele foi procurado, mas não havia retornado até a última atualização desta reportagem.

 

De acordo com a Defensoria, os responsáveis pelos projetos violaram o direito territorial e o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades que vivem nos assentamentos, acarretando riscos socioambientais, à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais.

 

Isso porque, sem autorização do estado e sem a realização de um estudo prévio, as empresas entram nos assentamentos, fazem monitoramentos, inventários florestais e até o cadastramento de famílias, sem qualquer controle do poder público e das comunidades.

 

Equipamentos de invasores para a extração ilegal de madeira em área de assentamento estadual em Portel — Foto: Giaccomo Voccio/g1

Moradores em comunidade ribeirinha em área de assentamento estadual em igarapé no rio Pacajá, em Portel (PA). — Foto: Giaccomo Voccio/g1